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Dia da Mulher Negra: História oficial invisibiliza figuras negras importantes para o Brasil

Historiadores e estudiosos lançam luz na história por trás da História, celebram a trajetória de mulheres negras brasileiras e discutem temáticas raciais
publicado: 25/07/2022 07h56 última modificação: 26/07/2022 10h27

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O povo negro é comumente associado a uma chaga social que marca o Brasil até hoje, a escravidão. No entanto, é preciso reforçar sua riqueza e grandeza, que por tantos séculos lhe foram negadas. Ser uma mulher negra acrescenta dose extra às barreiras e dificuldades impostas por uma sociedade que insiste em não lhe dispor do espaço que lhes é de direito. 

Para ajudar a voltar os holofotes às pretas, foi instituído o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha celebrado no dia 25 de junho. No Brasil, esta data ganha uma camada extra, ao celebrar a memória de Tereza de Benguela, importante liderança negra que dificilmente aparece nos livros de História do Brasil. O Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região), em parceria com a Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP) e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Paraíba (OAB/PB) realiza no dia de hoje um simpósio com temáticas que dizem respeito não apenas às mulheres negras, mas a todos e todas.

“Em uma estrutura social como a brasileira, que foi construída a partir de padrões discriminatórios e preconceituosos em relação à raça e, sobretudo, no que diz respeito à mulher negra, o racismo não somente ainda existe como traz desigualdades socioeconômicas e se torna elemento de negação à educação, ao emprego, à mobilidade social, dentre outros. O sistema de Justiça deve contribuir para a erradicação desse viés excludente”, evidenciou a coordenadora do Comitê Gestor da Igualdade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT-13, Ana Paula Porto.

"Em boa hora, esse evento tem como objetivo sensibilizar a sociedade pessoense a respeito da necessidade de aprofundar as políticas públicas voltadas às mulheres negras para a diminuição das desigualdades e a promoção dos seus direitos de cidadania. Temos que enaltecer sempre o papel das mulheres. Devemos lutar diariamente pela igualdade gênero e combater qualquer tipo de discriminação", pontuou a secretária Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres da PMJP, Nena Martins

Uma história de luta pelo direito de existir

Para falar sobre a presença e a ausência da mulher negra na História do Brasil, é preciso fazer uma reflexão sobre escravidão, preconceitos, mas também de potência, luta e resistência presentes nos eventos que constituíram nosso país. A professora de História da Universidade Estadual da Paraíba e do Uniesp Centro Universitário, Márcia Albuquerque, lembra que a mulher negra enfrenta um duplo desafio.

“Ser mulher no Brasil já é sinônimo de desafio, de luta por sobrevivência. Os números são alarmantes em termos de violência contra a mulher nos mais variados formatos, sem falar nos números de feminicídio. Como mulher somos inferiorizadas profissionalmente e intelectualmente como se fossemos incapazes de criar nossos próprios caminhos. Quando se trata da mulher negra, esse quadro se agrava, uma vez que vivemos em um país que não reconhece sua diversidade étnica e nem valoriza. As desigualdades sociais e a pobreza em nosso país têm cor”, afirmou.

Para atestar isso, basta fazer um exercício básico. Olhe ao redor do seu ambiente de trabalho e identifique quantas pessoas negras ocupam o mesmo cargo ou superior ao seu, em posições que não as de serviço ou limpeza. Quantas são negras? E quantas são mulheres negras? Ao entrar em restaurantes, escritórios e consultórios, pense no mesmo e faça o cálculo. Certamente não será proporcional, em alguns casos até pode haver a total ausência destas pessoas nos espaços sociais.

As instituições do Poder Público não estão isentas, como aponta a advogada Francisca Leite, diretora-geral da Rede Sororidade e Ouvidora Geral da OAB-PB. “O Brasil é um país racista e as instituições também são racistas. O Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, Estadual, Guardas Municipais, etc., todas estas entidades refletem o imaginário das pessoas brancas e o sentimento de supremacia, essa é uma cruel realidade. O racismo, assim como o machismo, estão presentes nas instituições, dificultando a ascensão das mulheres nos espaços de poder e isso se torna mais visível quando se trata das mulheres negras”, atestou. 

Para Francisca, o Estado Brasileiro precisa investir na educação racial, com um recorte efetivo do antirracismo. “É preciso começar a educar as crianças nas escolas, despertando nelas o sentimento de igualdade de raça, de democracia racial, consequentemente passando a história a limpo, de que não existe raça superior a outra e que ninguém poderá ser subestimado pela cor da pele”, completou.

Uma líder negra a ser celebrada

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Tereza de Benguela virou símbolo da luta dos negros no Brasil
  

Esta ausência que grita pode dar a falsa sensação de que os negros e negras não foram relevantes na concepção do Brasil, uma falácia que cai por terra facilmente, bastando se ater a figuras que não ganham o destaque devido, mas que contribuíram em um sem número de aspectos. Uma delas é Tereza de Benguela, figura homenageada no dia 25 de abril, que acaba simbolizando a mulher negra brasileira. Mas quem foi ela, afinal?

Francisca Leite, além de integrar as comissões da OAB/PB, também preside a nível nacional a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da OAB e também é uma profunda admiradora de Tereza de Benguela. Sua origem não é catalogada com precisão, até por conta da precariedade dos registros de pessoas escravizadas no Brasil Colonial, no entanto, é certo que ela foi escrava e, após fugir, vai até o quilombo, espaços de refúgio de negros procurados pelos senhores de engenho, e acaba se casando com outro quilombola, José Piolho, líder do Quilombo do Quariterê, ou Quilombo do Piolho, localizado na atual fronteira entre Mato Grosso e Bolívia.

“Quando José Piolho é assassinado pelas forças poderosas da época, depois da morte dele, Tereza assumiu o Quilombo Quariterê e se tornou uma notável liderança. Por sua localização de difícil acesso, o quilombo se tornou símbolo da luta no combate à escravidão. Tereza criou um aparato de defesa potente, ajudando indígenas e negros fugitivos a trabalharem com dignidade, ajudando a comunidade que vivia do plantio de feijão, mandioca, milho, algodão”, destacou Francisca.

Em um momento histórico em que mulheres mal tinham direitos básicos como o voto ou a vocalizar suas vontades publicamente, Tereza de Benguela se tornou uma figura política, com capacidade de administrar e gerir uma comunidade com bastante força. “Seu ímpeto em defender o quilombo fez com que ele resistisse até 1770, quando foi destruído pelas forças de Luís Pinto de Sousa Coutinho. Até hoje não se sabe exatamente como foi o fim de Tereza, mas seu nome permanece ecoando mesmo após sua morte”, completou. O dia 25 de julho foi estabelecido em sua homenagem pela Lei 12.987/2014.

Nomes de peso

Tereza de Benguela é apenas uma das inúmeras mulheres negras brasileiras que merecem destaque, sejam figuras históricas, sejam mulheres atuantes na contemporaneidade. A advogada Francisca Leite nos ajuda ao apresentar uma lista de nomes que devem ser mencionados:

Luislinda Dias de Valois Santos: nasceu em Salvador, foi a primeira juíza negra do Brasil e a primeira a sentenciar uma condenação por crime de racismo no Brasil; foi professora do Colégio Militar no Paraná, advogada na Bahia;

Esperança Garcia: escrava, foi a primeira mulher negra no Brasil que fez uma petição ao Governador do Piauí, denunciando os maus tratos da escravidão contra ela e a sua família. Somente agora foi considerada pela OAB como advogada;

Viviane dos Santos Barbosa: desenvolveu um produto que reduz as emissões de gases poluentes. Em 2010, recebeu um prêmio por seu trabalho;

Antonieta de Barros: nascida em Florianópolis (SC), foi professora, jornalista, escritora, fundou o jornal "A Semana" e se tornou a primeira deputada estadual negra do Brasil, autora da lei que instituiu o dia 15 de outubro, dia do professor, para enaltecer e valorizar a profissão;

Glória Maria: a primeira mulher negra repórter da TV brasileira, a jornalista nascida no Rio de Janeiro por muito tempo foi a única referência de mulher negra bem-sucedida na área, algo que vem mudando gradativamente;

Djamila Ribeiro: nascida em Santos (SP), a pesquisadora, filósofa política, escritora e colunista da Carta Capital e da Revista Elle coordena a coleção Feminismos Plurais.

Carolina Maria de Jesus: nasceu em Minas Gerais e escreveu o livro "Quarto de Despejo", obra traduzida para mais de 10 idiomas e considerada um dos primeiros livros de Literatura escritos e publicados por uma mulher negra a repercutirem no Brasil:

Sueli Carneiro: filósofa, doutora em Educação pela USP, fundadora e coordenadora do Geledés - Instituto da Mulher Negra do Estado de São Paulo.

A professora Márcia Albuquerque complementa este rol com nomes como o da escritora Conceição Evaristo, que reverbera em seus livros de ficção a realidade e os anseios de mulheres de sua cor; a cantora e compositora paraibana Cátia de França, a baiana Margareth Menezes, entre outras. No campo intelectual, também há a necessidade de celebrar nomes como as professoras Geovana Xavier (UFRJ), Solange Rocha (UFPB), Solange Mouzinho (Ed. Básica na Paraíba), Ivonildes da Silva (UEPB) e a ativista e educadora Tutu, uma das fundadoras do Movimento Negro na Paraíba.

“A ciência também conta com nomes de mulheres negras importantes como Sônia Guimarães, a primeira negra a dar aula no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA); Jaqueline Goes de Jesus, que sequenciou o genoma do Coronavírus; a cientista social Luiza Bairros, entre outras. Estas são algumas, poderíamos citar muito mais, além daquelas que não tem reconhecimento. Se observarmos a mulher negra contribui e está presente em tudo na construção deste país, mas não é reconhecida”, frisou Márcia.

Onde estão essas negras nos livros de História?

Aos poucos, as histórias dessas mulheres estão podendo ser contadas e apresentadas a novas gerações. Em 2003, com a assinatura da Lei nº 10.639/2003, tornou-se obrigatório o ensino de História e Cultura da África e dos Afrodescendentes na Educação Básica da grade curricular das escolas públicas brasileiras. Este paradigma pode ser considerado o início de um movimento consistente de tentativa de remodelar o modelo de ensino do país, rompendo com uma narrativa que se arrasta por séculos, de constante apagamento da história do povo negro.

Quase vinte anos depois, é possível sentir os reflexos desta transformação. “Não podemos negar avanços, mudanças significativas, mas precisamos ter clareza que a mudança que desejamos advinda da educação, que promova a consciência histórica é lenta”, pontua a professora Márcia Albuquerque. Inicialmente, parecia que inserir este conteúdo em livros didáticos era o suficiente, mas, obviamente, para problemas complexos, são necessárias soluções igualmente extensas e detalhadas.

“Foi necessário refletir, criticar e analisar estes materiais para que ele efetivamente cumprisse o que é colocado. O Ensino Superior precisou inserir disciplinas no seu currículo para que os docentes saíssem preparados da universidade para discutir o conteúdo na Educação Básica. Cursos de formação continuada, especialização e até Mestrado nesta linha começaram a ser ofertados”, explicou a professora Márcia. No entanto, ainda há universidades em que a disciplina de História da África nos cursos de História ainda não é obrigatória, o que torna este processo truncado. 

Embora seja um processo desafiador, as diferenças são visíveis, como atesta o professor da rede municipal de ensino de João Pessoa, Lucian Souza. O doutor em História e integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI - UFPB) conta que, desde 2007, houve a ampliação das cargas horárias de Língua Portuguesa e História para dar cumprimento à Lei no âmbito do ensino nas escolas municipais, além do aumento do volume de livros didáticos e paradidáticos que se preocupam com a discussão das relações étnico-raciais. “Contudo, ainda temos um longo percurso para a sua implementação. Um obstáculo a ser vencido é o racismo que perpassa o cotidiano das instituições de ensino. Ainda identificado a resistência de alguns gestores escolares ou professores em trabalhar a temática. Talvez esse seja nosso maior desafio”, refletiu.

Enquanto mulher negra de pele clara, a professora Márcia Albuquerque que um dos passos que podem contribuir para um nível de educação antirracista e transformadora, é necessário se desfazer de algumas certezas e conceitos cristalizados na mentalidade da população. “Somos negras, convivemos com negras e por vezes nossa ideia da figura negra é totalmente diferente do que somos. Então, ao meu ver, quando discuto esta temática na sala de aula, começo desconstruindo a ideia da cor negra como imperfeita. A partir da desconstrução, principalmente da realidade dos meus alunos, vamos construindo outra história”, relatou.

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Escravidão: tópico ainda não superado

Ao falar sobre a mulher negra, é necessário evidenciar sua potência e sua contribuição indelével para a construção da sociedade brasileira, mas não é possível dissociar isso das chagas sociais que explicam um pouco dos desafios que elas enfrentam cotidianamente. Como é possível perceber pelo noticiário recente, a escravidão, infelizmente, não é um assunto relegado aos livros de História, se refletindo em formas como o trabalho análogo à escravidão.

As pessoas submetidas a este tipo de crime são, em sua esmagadora maioria, pessoas negras e, no ambiente doméstico, especialmente as mulheres. Uma idosa, negra, do Rio de Janeiro, foi resgatada no início deste ano e é considerada pelo Ministério do Trabalho como o caso mais longo de situação análoga à escravidão registrada no Brasil, pois passou 72 anos em situação de exploração. Em abril, o caso de outra idosa, resgatada em 2021 em Lauro de Freitas, na Bahia, viralizou nas redes sociais ao mostrá-la receosa ao tocar nas mãos da repórter que a entrevistava para uma TV local por serem mãos de uma mulher branca. Madalena Santiago da Silva, de 62 anos, passou 54 anos de sua vida submetida a condições análogas à escravidão.

Até mesmo mais recentemente foi possível ter acesso a uma história semelhante por meio do podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha de S. Paulo, conduzida pelo jornalista Chico Felitti, com uma mulher negra brasileira forçada a trabalhar sem receber e passando por toda sorte de maus-tratos e negligência por quase duas décadas nos Estados Unidos. Os casos são inúmeros e revelam uma realidade indigesta para algumas pessoas: a escravidão não acabou no Brasil.

Para a professora de História, Márcia Albuquerque, superar a discussão da escravidão é ultrapassar o lugar da negritude no nosso país. “O Brasil viveu mais de 300 anos de escravidão e aqui no Brasil possuiu um contexto diferente por ser totalmente econômica. As pessoas sequestradas e escravizadas no Brasil eram destituídas de humanidade, eram peças. Foram três séculos em que a população negra era apenas objeto, peça de valor monetário”, explicou. 

Com a abolição da escravatura, em 1888, e posteriormente a Proclamação da República, no ano seguinte, começou, de acordo com a professora, uma discussão sobre identidade nacional, buscando um alinhamento com os moldes europeus de civilização. Neste processo, uma tentativa de erradicar a cor negra da população. “Para tanto, a ciência e inúmeras teorias raciais legitimaram este debate, buscando demonstrar uma ‘inferioridade’ da população negra, para justificar que esta população não poderia sequer concorrer com pessoas brancas por não alcançar seu nível”, enfatizou. 

O professor Lucian Souza segue na mesma linha de raciocínio em sua argumentação. “Os rumos que o Estado e a sociedade brasileira deram no período após a abolição foi uma opção, havia naquele momento projetos de Brasil diferentes daqueles escolhidos pela elite, como o caso das ideias do abolicionista André Rebouças, que defendia o fim da escravidão e o que ele denominava de ‘Democracia Rural’, o que incluía terras e propriedades destinadas a pessoas negras escravizadas. Desse modo, excluir as pessoas negras durante a República foi uma atitude intencional. Havia outras possibilidades”, argumentou.

Para a advogada Francisca Leite, é preciso descolonizar, ou seja, ressignificar a história, que foi contada pelas pessoas não-negras. “É chegada a hora da história ser recontada pelos oprimidos, sem esquecer do período tenebroso da escravidão”, defendeu. Superar a discussão da escravidão está longe de ignorá-la. É preciso trabalhar na perspectiva da força e singularidade da população negra, com atenção especial nas mulheres, efetivamente como potência, mas entendendo o processo histórico que nos trouxe até aqui.

André Luiz Maia
Assessoria de Comunicação Social TRT-13