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Dia dos Povos Indígenas: histórias que ainda não fazem parte da História

Apagamento da presença de povos indígenas no Sertão paraibano e dificuldade na inserção no mercado de trabalho são questões abordadas neste especial
publicado: 19/04/2023 16h03 última modificação: 27/04/2023 11h24

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Antes de qualquer um de nós, eles já estavam aqui. Povos que carregam consigo histórias que não apenas não integram corretamente a História, aquela oficial, com H maiúsculo, mas que passam por um processo de apagamento. Como forma de não apenas celebrar sua existência, mas também lembrar a resistência deles, foi determinado 19 de abril como o Dia dos Povos Indígenas.

Palavras não existem em um vácuo, descontextualizadas de histórico ou pré-concepções atreladas a elas. A antiga nomenclatura da data remetia a uma ideia incorreta na hora de se referir aos povos originários do Brasil, por isso, deixa-se de utilizar “índio” e adota-se o indígena. A mudança oficial do nome da data ocorreu apenas no ano passado, consequência de uma longa discussão e luta por parte dos próprios indígenas. 

É pelo reconhecimento de suas identidades que eles se reúnem e levantam suas vozes. Algo importante a ser frisado: indígena, termo que significa “originário” ou ainda “nativo de um local específico”, é um termo guarda-chuva, que abrange um sem número de povos, espalhados por todo o Brasil. Aqui na Paraíba, temos o povo Potiguara, no Litoral Norte, e os Tabajara, no Litoral Sul, como nomes mais proeminentes. Contudo, há movimentações no semiárido paraibano que reivindicam a presença dos povos Cariri e Tapuia-Tarairiú em nosso estado.

No Dia dos Povos Indígenas, o Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região) apresenta algumas dessas histórias e reflete sobre o que é ser indígena em 2023, buscando romper com ideias cristalizadas na mente da população em torno deles, além de pensar sobre as barreiras que esta parcela da população precisa transpor para ingressar em um mercado de trabalho que reflete os preconceitos da nossa sociedade.

Lutas irmãs

O povo Tabajara se concentra em municípios do Litoral Sul da Paraíba, especialmente Conde, Alhandra e Pitimbu. A liderança indígena Jacy Tabajara é uma das porta-vozes da busca pelo reconhecimento da existência de seu povo. “Os Tabajara foram silenciados por muitos anos. A História contou que estávamos extintos há mais de 150 anos, porém esse processo de silenciamento fez com que ficasse adormecido dentro de nós um forte sentimento de justiça social, com o objetivo de fortalecer a memória de nossos avós como verdadeiros donos deste lugar”, defendeu. 

Há quase duas décadas, os Tabajara lutam para terem suas terras demarcadas, situação reconhecida pelo Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, organizado pela Fiocruz. Desde a década de 1970, os Tabajara dividiam terras com pequenos produtores de agricultura familiar de maneira harmoniosa, mas na última década, com a chegada de investimentos da iniciativa privada da região, este equilíbrio vem sendo posto em xeque.

“Nós passamos por um processo violento de colonização, de apagamento da nossa língua, da grilagem, do esbulho de nossas terras. É um processo de resistência que resultou na luta pela retomada dos nossos territórios. Há 17 anos, acionamos a Justiça brasileira e estamos reivindicando a demarcação do nosso território”, completou Jacy.

Em situação que se assemelha em alguns aspectos, mas se distancia em outros, está a dos Tapuia-Tarairiú, historicamente presentes ao largo do Rio Sabugi, no Sertão paraibano. Um dos articuladores do povo é o indígena antropólogo Karuá Tapuia-Tarairiú, que explica os conflitos envolvendo a região. “Temos a luta pelo reconhecimento do patrimônio histórico em nossos territórios no Sertão paraibano. Há muitos sítios arqueológicos com pinturas rupestres, cemitérios indígenas, locais de rituais sagrados, alguns deles são até catalogados, o Estado têm conhecimento deles, mas que sofrem com a precarização e o ataque da iniciativa privada, mais recentemente com a instalação de parques de energia solar e eólica nestes locais”, pontuou.

Assim como os Tabajara, os Tapuia-Tarairiú também passam por um processo de reivindicação das identidades indígenas, já que a História oficial coloca estes povos como extintos na região. “Por conta desses apagamentos históricos, há uma dificuldade de identificar nossa existência enquanto indígenas sertanejos, que possuem territórios tradicionais e que estes devem pertencer a estas famílias por direito”, defendeu Karuá.

Histórias que não constam na História

Os processos de construção narrativa da chamada História oficial, a que é ensinada nas salas de aula de um país, é fruto de uma teia imbricada, mas que geralmente encontra até aqui um denominador comum: a perspectiva da classe dominante. Por sofrerem genocídio e apagamento histórico, os diversos povos indígenas brasileiros acabaram vendo as páginas que lhe cabem na história da construção da nação brasileira rasgadas e jogadas ao vento.

Entretanto, existe um movimento de contraposição a este processo, que vem tanto de dentro de círculos acadêmicos quanto das articulações promovidas pelas lideranças indígenas. Pensando no aspecto da academia, um exemplo disso é o livro “Povos Indígenas, Independência e Muitas Histórias”, que traz autores de diversas partes do país para repensar as narrativas historiográficas dos indígenas na História oficial.

Uma das autoras da obra é a professora Mariana Albuquerque Dantas, do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ela deixa claro que a ideia de excluir os indígenas das narrativas era um projeto estatal. “O conhecimento histórico e as memórias operam uma função central na construção das identidades coletivas, sejam de Estados, sejam de povos originários. Daí o investimento do Estado imperial brasileiro no século XIX em escrever uma história única do país, com uma visão homogeneizante, em que os indígenas são apresentados como agentes secundários”, argumentou. 

É a partir deste discurso, na avaliação da acadêmica, que surgem visões distorcidas em torno da população, desde a pôr em dúvida a capacidade de trabalhar e da inexistência desses povos em diversas regiões do Brasil. “De maneira impressionante, algumas dessas ideias permanecem alimentando algumas narrativas historiográficas e o senso comum nos dias de hoje. O Brasil vai sendo pensado como um país em desenvolvimento, mas cujo progresso é recorrentemente atrapalhado pelos indígenas, que deveriam permanecer existindo apenas no nível da anedota ou do folclore”, exemplificou a professora Mariana Dantas. 

As questões particulares de cada povo, como pudemos ver um pouco antes, podem ser distintas, mas encontram um denominador comum: o reconhecimento dos indígenas como cidadãos, com seus direitos reconhecidos. “Nossa luta é pelo direito de existir, por condições de sobrevivência, por políticas públicas específicas que atendam às nossas necessidades, saúde e educação diferenciados, resgate da nossa língua materna, respeito às nossas tradições e culturas. A História oficial ensinada nas escolas é contada pelo olhar do colonizador, por isso precisamos romper com essa hierarquia dos saberes e reconhecer a importância das ciências tradicionais e trazer para as pessoas o direito à memória, à justiça e à verdade”, defendeu a liderança indígena Jacy Tabajara.

Para o articulador indígena Karuá Tapuia-Tarairiú, o ensino da temática indígena, com essa revisitação histórica que põe a perspectiva da narrativa pelo olhar dos povos originários, é fundamental para a mudança desse paradigma, especialmente no caso particular de seu povo. “O sistema educacional nos priva do direito à memória. Somos povos de origem majoritariamente rural e quando nos deparamos com livros de História, vemos que lá ainda consta a extinção dos povos indígenas no Sertão, algo que não é verdade. Quando alguns materiais apontam que existimos, há uma hipergeneralização, unindo tapuias e cariris como se fossem uma coisa só, o que é por si só uma visão racista e etnocida dos nossos povos, promovendo um apagamento histórico dos indígenas do semiárido”, denunciou.

A professora Rita de Cássia Melo Santos, do departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), outra autora que contribuiu para a concepção de “Povos Indígenas, Independência e Muitas Histórias”, defende que esse movimento de retomada da história dos indígenas não é um favor, mas sim a obrigação mínima que o país deve a eles. “Os indígenas foram atores fundamentais à formação nacional. Desde o período colonial até os dias atuais, foi através do seu trabalho, dos seus territórios e de suas inúmeras contribuições que esse país se formou e se consolidou enquanto unidade. Os direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 não são benefícios dados a eles, esses direitos constituem uma reparação histórica à violência e à usurpação a que foram submetidas tais coletividades. São também fruto de uma grande luta, protagonizada pelos próprios indígenas e seus apoiadores. Assim, reescrever a história do Brasil desde uma perspectiva indígena significa modificar a lente através da qual esses povos são lidos e compreendidos no Brasil atual. Uma tarefa urgente a que todos nós devemos tomar parte”, enfatizou a acadêmica. 

Preconceito no mercado de trabalho

Conseguir um emprego pode não ser uma tarefa fácil para milhões de pessoas no Brasil, mas há obstáculos maiores a serem superados a depender do local onde você mora, da cor da sua pele ou de seus marcadores étnicos. Os povos indígenas não escapam desta lógica, algo que começa no processo educacional. “Poucos de nós passam por uma universidade e se formam, sendo difícil alcançar postos de trabalho que ofereçam melhor remuneração e melhor qualidade de vida. A maioria dos indígenas é marginalizada, que não acessa todos os recursos necessários para se capacitar e poder entrar em uma disputa justa no mercado de trabalho”, alerta, de antemão, Jacy Tabajara.

Mesmo ultrapassada esta barreira, ou seja, a conquista de qualificação e um bom currículo, a identidade indígena acaba sendo questionada e deslegitimada, como alerta o articulador Karuá Tapuia-Tarairiú. “Como acontece com outras populações não-brancas, também somos alvos de racismo, seja por nossas características fenotípicas, seja pelo uso de pinturas corporais. Chegam a negar até mesmo entrevistas de emprego por conta disso”, denunciou. A precarização dos empregos entre os indígenas prejudica a própria articulação política e reivindicação de direitos a estes povos.

Para a professora Rita Santos, empregadores e órgãos regulatórios dos direitos trabalhistas como o TRT-13 precisam estar atentos a estas particularidades. “É preciso considerar a imensa diversidade de povos indígenas no Brasil, com mais de duas centenas de povos, falando mais de uma centena de línguas, em diferentes condições territoriais e níveis de acesso à educação e à saúde diferenciadas. Além dos indígenas nativos, temos na Paraíba a presença de famílias Warao, indígenas venezuelanos que se estabeleceram no estado e hoje correspondem a quase quatro centenas de pessoas. Cada um desses povos vai possuir acesso ao trabalho de modo diferente de acordo com aspectos linguísticos, territoriais e culturais próprios”, alertou.

Afinal, o que é um “indígena de verdade”?

A pergunta é capciosa, já que ela não possui resposta correta. Por conta de todo o projeto político em torno do sistema educacional que estereotipa os indígenas ao longo dos séculos, existe uma ideia cristalizada e padronizada no senso comum a respeito do que é "ser um indígena". Afinal, ser um cidadão urbano, longe das comunidades, deixando de vestir trajes típicos, pinturas corporais ou usar cocares, atuando em frentes acadêmicas, científicas e sociais, torna alguém “não-indígena”?

A professora Rita Santos aproveita o assunto para reforçar que não há contradição alguma entre ser indígena e fazer parte do mundo contemporâneo, utilizar equipamentos tecnológicos, falar português, morar nas cidades ou qualquer outro aspecto do mundo atual. “Os indígenas estão inseridos no mundo globalizado e são atores fundamentais da geopolítica internacional sem de modo algum abandonar suas tradições e culturas. (...) Felizmente, a cada década, o movimento indígena organizado se mostra cada vez mais forte. Hoje suas lideranças plenamente formadas dominam a linguagem dos direitos e as novas tecnologias, são capazes de levar adiante empreendimentos fabulosos”, reforçou.

Um exemplo citado pela acadêmica é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 709, que basicamente é um dispositivo legal que promove as chamadas “desintrusões”, que é a expulsão de invasores de terras de povos originários e sua subsequente devolução aos reais donos dos territórios. Sob a visão distorcida do ideário em torno do indígena, esse tipo de articulação, calcada no Direito e na política institucional, não poderia ser articulada por “indígenas”, pois estes não seriam campos de atuação destinados a eles.

Para Rita, mudar esta percepção é um dos grandes desafios do Brasil. “É preciso pensar em políticas públicas destinadas aos chamados ‘indígenas desaldeados’ e os ‘indígenas em contexto urbano’. Parte das políticas públicas desenhadas para os indígenas tomaram por base os territórios indígenas como ponto de atuação, ignorando a presença histórica dos indígenas em espaços urbanos e o seu necessário atendimento diferencial nessas localidades. Uma pessoa indígena não deixa de ser indígena por ter saído do seu território ou, em alguns casos, pela cidade ter invadido o seu território. A identidade étnica é algo constitutivo da pessoa indígena e a acompanha aonde ela estiver”, defendeu. 

Para tentar ilustrar de maneira mais enfática, podemos fazer uma comparação grosseira, mas que possivelmente ajude a deixar mais evidente. Um brasileiro que mora no exterior pode adotar comportamentos e costumes do país estrangeiro, falar outra língua, vestir outros trajes, mas dificilmente isso irá apagar por completo sua identidade cultural, já que, parafraseando as palavras da própria professora Rita Santos, é algo constitutivo da pessoa criada no Brasil e a acompanha aonde ela estiver.

Por isso, entender que não há um “modelo” de indígena é fundamental para começarmos, nem que seja a passos lentos, a reconfigurar o modo em que enxergamos a história do nosso país e, quem sabe, construirmos um futuro que incorpore de fato as narrativas dos povos originários não como uma “história outra”, mas como como parte da nossa própria História.

#PraTodosVerem: A matéria tem duas imagens. Na primeira foto, indígenas do povo Potiguara fazem a dança ritualística tradicional toré no centro do auditório do Tribunal Pleno. A perspectiva da imagem vem do fundo da sala, com a luz do projetor de imagens irradiando uma luz quente e amarela. Na segunda imagem, indígenas usando cocares e adereços típicos ocupam o hall de entrada do edifício-sede do Tribunal. Um deles faz pintura corporal no braço de outra indígena. Ao fundo, as penas coloridas dos cocares, predominantemente azuis e brancas, contrastam com as cores quentes dos quadros do artista plástico paraibano Flávio Tavares, que retratam vários representantes de classes trabalhadoras, tanto em contexto urbano quanto rural.

André Luiz Maia
Assessoria de Comunicação Social TRT-13